Que se chamava carnaval

* Este texto faz parte do livro 30 carnavais em amarelo e lilás

(Parte A)

Em 1996, quem tinha 12 anos e morava na Zona Sul em geral se mandava com os pais no feriadão de carnaval, tal de isquidum pra gringo. Olhar pro lado e não se reconhecer – todo mundo tão mais alto. Lá pelas bandas do Colégio Santo Agostinho era quase cafona ficar no Rio, e eu com a minha irmã fugindo à regra, espremidas de isopor e gente mais velha. Alguma coisa ali colava com as marchinhas cantadas pela avó e com a ida a ensaios da Imperatriz com a mãe.

Mas: que mais era carnaval? 

A professora da escola não falava sobre e eu nem sabia que nome de cavaco era cavaco. Era gente espremendo a gente, enquanto um pai e um tio animados sambavam por perto. Que se largava o aço nas subidas de favela. Que começavam a espetar de grades as portarias dos prédios, todo mundo querendo se mudar pra na Barra. Quem tinha 12 anos e morava na Zona Sul em geral se mandava com os pais no feriadão de carnaval, Araketu bombando na rádio. E eu com a minha irmã, ouvindo em Ipanema que o barato é um cantinho do Sudeste. Sentindo gente espremendo gente, no meio da rua - essa coisa perigosa. 

(Parte B)

Na virada da Joana com a Visconde, eu gostava mesmo era do Romão e do Dado de Malhação e de imitar a Carla Perez com short de lycra colorido, que diabo aquele isquidum no meio de Ipanema chamando as ruas pelo primeiro nome? Apertei a mão da minha irmã já sem conseguir enxergar pai e tio. Por que não viajaram comigo, esse bando de bebum me espremendo? Que música é essa que eu nunca ouvi na rádio? O que eu vou dizer na escola pra quem voltou bronzeado de Angra? “O coro come, ninguém se esconde” – o refrão narrava meu sufoco – “na virada da Joana com a Visconde”. Igual a mim com a minha irmã, alguma coisa ali dava as mãos pras marchinhas cantadas pela avó, pras fantasias de pirata nos bailes em Paty de Alferes. Alguma coisa que se chamava carnaval dava as mãos para uma cidade que eu nem chutava que existia. 

Na Visconde de Pirajá tinha menos gente do que na praia e dava alívio ter virado a virada, mas não foi isso não. Até alguém de 12 anos conseguia entender: depois da virada, superados o sufoco e a incompreensão de um carnaval distante do de sempre, um outro Rio escancarava, ora!, que se dane o noticiário de uma cidade falindo - iscambum não se vende em pacotes de viagem, não tá nos jabás, nos seriados de 17h30, na escola ponta de linha do Leblon. 

Troço que se sua, se espreme. 

Que se canta, mas não se diz. 

Tá vendo aquilo ali tropeçando poesia? É o coração vadio da cidade.

(Parte A’)

Em 2013, quem fazia samba gostaria de ver um dos maiores blocos da cidade cantando um seu, no isquidum do Mestre Penha. Olhar pro lado e ver nas bocas o verso rabiscado com os amigos num guardanapo de salame – todo mundo ia achar gostoso. Lá pelas bandas da Gomes Freire, a gente se concentrando pra defender no ensaio de logo mais uma homenagem a Vinícius. Não havia alguma coisa ali que não fosse encontro. 

Mas: e daí disputar um samba?

O moleque do cavaco não ganhava por isso e as madrugadas viradas cobravam a conta depois de quarta-feira. Era rima empurrando rima, enquanto alguém repetia: “Caí nos braços de orfeu de amarelo e de lilás”. Que se largava o riso quando verso vinha certo. Que começavam a juntar letra e melodia, todo mundo na palma pra firmar. Quem beirava os trinta e tava no boteco se concentrando pra defender o samba no ensaio do Simpatia queria mesmo era farra. E eu com a minha avó enchendo o copo e ensinando o refrão que ela ia defender com a gente. Sentindo rima empurrando rima, com a cadeira quase no meio da rua – essa coisa imprescindível.
(Parte B’)

Na virada da Joana com a Visconde, eu gostava mesmo era de uma cerveja e batuquejê, que diabo aquele povo das janelas que não descia pro bloco? Apertei o couro da cuíca e alguns anos depois fui parar em cima do carro de som para levar o samba que disputamos pelos lados da Gomes Freire. De cima via pai, tio, irmã. Por que ninguém me disse que era o último carnaval do meu pai, esse cabra que arrastou minha avó de cadeira de rodas pro bloco não se cabendo de contente de a filha ter ganhado o samba? Por que não avisaram que ele ia aproveitar a deixa da homenagem a Vinícius e morrer no dia do centenário do poetinha? Que coisa é essa chamada carnaval que inventa coincidências condecorando a dor? “Caí nos braços de orfeu de amarelo e de lilás” - meu pai cantava na avenida - “hoje sou eu e Vinícius de Moraes”. Alguma coisa que se chamava carnaval, meses depois, passou a ser um consolo que eu nem chutava que existia.

Em cima do carro é menos que no asfalto, e me mandei pra perto da bateria, mas não foi isso não. Até alguém que não se samba conseguia entender: é coisa demais juntar na farra eu, irmãos, avós, minha mãe, meu pai, ora, que se dane se os corações um dia engasgam a serpentina – o iscambum sobrevive aos sambas, aos compositores de sambas. Aos pais de compositores de samba. 

Troço que se sua, se espreme. 

Que se canta, mas não se diz. 

Tá vendo aquilo ali tropeçando poesia? É o coração do seu pai te soprando a cidade.

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