Pra não desgarrar

* Este texto faz parte do livro Larica Carioca

É dia de gracejo de Seu Souza, diz rabada no angu só pra escangalhar de rir me olhando dar meia-volta, eu achando pouca graça nenhuma. Mas não sou de criar caso, ex-mandingueira, negavéia, curtida nos quentes do fogão, meio que sem-querendo me acostumei a desgracejos assim. Quéqui se faz, yeyê? Quéqui se faz, yayá? Um pé no chão de Braúna só ruma pra trabaiá.

Aqui é tudo nos conformes, senão ele acha ruim. Uniforme engomado, puído das seis bocas pros domingos em que a família de Seu Souza vem inteira. Vai daí pra mais de três pratos e a tal rabada que ele ri amarelado de cigarro, todo metido nos ternos nesse calorão de deus-me-defenda.

Domingo começa na quarta, me toco pro açougue: pedir o corte na junta dos ossos pra carne não desgarrar toda. Passo o dia remexendo, sentindo no cheiro um cantinho da minha Minas de antigamente - enquanto ele sossega reclamando com o noticário. Vez em quando chia alto da sala de tevê se eu me esqueci da vida, que ele sabe que não, se não foi ele que me ensinou pra temperar tudo bem miudinho, como se eu não soubesse, negaveia, ex-cozinheira de botequim na Central. Ave-maria. Outros tempos, fazia um pratão desses toda hora, dobradinha na segunda, língua na terça, na quarta não lembro. Fígado, carré, tudo de cabeça que ler nunca foi meu forte. Não preu me gabar que não sou disso, mas o povo comia com gosto e depois eu saía pra espiar eles no cochilo da obra e do ponto de táxi.

Hoje deixo tudo temperando enquanto passo as calças de linho, de esquecer a vida no vai-que-vem do ferro: eu gostava daquele agito de bar, beliscar a cerveja no fim do dia pras bandas de casa, a batucada que improvisavam.

Na sexta, tiro a bacia da geladeira e espio o cheiro de que tá pegando gosto. É quando Seu Souza deixa de história e dá palpites de mais ou menos sal. Nunca disse onde aprendeu, só diz dos tempos de Marinha e que a geladeira já não tá prestando. Duvido que frequentasse biroscas - na primeira gracinha de falar rabada e virar o pescoço rindo tomava um segura-essa. Mas entende, quem que sabe, do cardápio de PF, e me incomodo nada: quem é dos seus não se degenera, um pé no chão de Braúna só ruma pra trabaiá.

Quando o telefone tocou naquele sábado, eu tava picando coentro e pensando longe numa gente ruim que anda de quizilha no açougue. Seu Souza foi atender raivado da minha demora. Cheguei e ele já de orelha no fone, gosto nem de lembrar. Pensei mesmo que ele não guentaria mais uma semana – logo o neto mais moço, o que tinha o mesmo nome dele e tava estudando pras Forças Armadas. Deu de ficar mudo, não se importar em comer o mesmo prato no almoço e na janta, tomar café depois das dez, lanche já de noitinha. Nem se falou mais em rabada, se o dedinho de manjericão tinha deixado tudo com gosto de pizza. Foi pra mais de ano.

Me pediu um dia: Rosina, o que é que você fez quando perdeu sua menina? Vim pro Rio, Seu Souza, desgarrar da tristeza. E desgarrou?, ele repetia meu verbo meio desajeitado. Lembrei ele do osso preso em carne de rabada - que desprende mas não solta. Não dá jeito se afundar nas lembranças, Seu Souza, é igual errar a mão no tempero. A gente remexe as coisas enquanto saculeja a panela, mas se descuidar cai dentro dela, dá jeito não: coisa boa é refogado enchendo de cheiro a casa da gente!

Ele até palpita sal e o ponto da carne, mas não entende dessas coisas miúdas, prefere barco grande e gracejo besta com a rabada, quéqui se faz, yayá. Era assim que eu cantava pra minha menina na Minas minha de antigamente.

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