Camaradagem

* Este texto faz parte do livro Rio de Janeiro: alguns gênios e muitos delírios

recebeopasse

Toda vela da década de cinquenta em Cosmos servia pra iluminar defunto ou casa de cômodo, que luz e água custaram a chegar. No dia em que o moleque fez de trave os dois tocos de cera, o jogo foi bom, mas nem um elogio de Domingos da Guia aliviou a surra em casa. O moleque joga, seu Eustórgio. Só que o barraco tava no escuro.

E no escuro ficou até o jogo acabar.

Depois de o pai, escrevente que era, ter intuído o milhar no jogo do bicho, a casa em Campo Grande cheia de filhos ficou pra trás. No novo barraco a inquilina pediu só mais uma semana. Um mês. E no dia da mudança, passou a tesoura na fiação, ingratidão é uma merda.

Lei do bicho. Da igreja. O pai escrevente e a mãe na missa todo domingo.

Da surra por futebol-de-vela à falta de luz do primeiro dia de casa nova, o que pegava mesmo era a virgindade das moças, taquilpariu. Na manga, o rendez-vous: Rua do Acre, número tal, onde ele deixava escorrer com gosto cada cruzeiro de moleque que foi trabalhar na Cidade ao custo de uma escola incompleta. O serviço em casa de câmbio obrigava o fla-flu constante entre custo e benefício. Se valia à pena? Cada moça!

Dose era não ter um primo-irmão pra bater bola. A escola acabou mais tarde no esforço da jornada tripla de morador da Zona Oeste-trabalhador-estudante noturno. Daí, o curso de Direito e um de transações comerciais na PUC, esse pago dando carona em carrozinho merreca aos colegas de faculdade. Numa dessas, conheceu um empregador dos mais rentáveis. Foi-que-foi, o escritório próprio embalando.

Ganha dinheiro. Perde dinheiro. Ele lá quer saber? Não fosse isso, o menino bom de câmbio não teria virado dono de um botequim que não serve nem azeitona - por falta de garçom e de azeitona. A casa que teve a luz cortada mudou-se para outros cantos até chegar em Copacabana, é que se ganha dinheiro. Na falta dele, um casamento promissor deixou de ser: é que se perde.

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Ubirajara, Fidélis, Mário Tito, Luís Alberto e Ari Clemente.

Jaime e Ocimar.

Paulo Borges, Ladeira, Cabralzinho, Aladim. E o Mulatinho Rosado – polemicamente – era campeão de 66 em cima do Flamengo. Não há o que não tenha apelido em Cosmos, e não seria o Bangu a não ter, o Mulatinho Rosado. Primeiro time da rapaziada de cor, queimadinha, morena. Negra. Proletária mesmo. Suando até desbotar a camisa vermelha-branca. O bom de bola estava por lá, sócio-prestante, se insinuando no futebol de salão. Mas o apelido veio do rival Campo Grande, de atacante Roberto Peniche. E o menino que começou Alfredo no futebol-de-vela, a molecada chamava logo de Peniche. Depois, virou Neném. Bangu por dentro, o que não mudou foi ser Botafogo.

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Quem vai ao bar não entende por que não tem - sequer uma! - azeitona. Em seguida, o esforço é saber qual é daquele dono cheio de barba berrando em pigarros para que se faça silêncio. Ainda por cima, 'Neném'. Chama Bip-Bip o botequim, nome já apelido. Quando ele comprou, parte da compra foi convertida em doses de uísque para o ex-proprietário. Ah, o menino era bom de câmbio, já estava pelos quarenta e sabia que a boemia levada a sério ia ser a alma daquilo tudo. Faltava a música. Dez amigos depois, não mais: domingo-samba, terça-choro, quarta-bossa, quinta-samba, sexta-também. Sábados são para aniversário, os amigos bem mais de dez. Tome papo - do jeito que o futebol anda hoje, meu filho...

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Ainda no primeiro serviço de câmbio, ele ouvia dizer Lacerda, Getúlio. Em casa tinha aquilo de pai-dos-pobres ou bota-o-retrato-do-velho-outra-vez.  Livros pela madrugada, as discussões com os coroas, a revolução o Alfredo começando a chamar de golpe. Num foi que no dia que os milicos botaram o pau na mesa - à vera - e chamaram de AI-5, o tal cara, o do uísque, abriu o bar em Copacabana? O tal Bip Bip, o que tem nome de satélite soviético. 13 de dezembro de 1968, deus me livre - que a missa era todo domingo.

Daí pra frente, o couro comendo, também era contravenção esconder livros comunistas ou quase, foi o que ele fez, o Alfredo. Nos bangalôs, afins e apartamentos, entocava também os próprios comunistas ou quase: os generais não queriam nem saber a diferença.

Bem depois começaram as greves. Lula-lá, e o menino-da-vela também lá, em Bangu, organizando comitês.

E foi assim: o bar que surgiu com o cara do uísque no AI-5 esperou até as Diretas para cair nos braços dele, o Alfredo. Uma dose aquiali - simbora.

bagunçaosegundo

Quem chega ao bar, de primeira não entende. Lugar mixuruca, nem azeitona! Miúdo que só um golzinho de vela. Banheiro: um, que vale por meio. Garçom nem tanto - foi quando o Alfredo ganhou prêmio de segundo melhor garçom da cidade. Ou O Que Nunca Serviu Nada. Só música. Papo. Causos da época de Cosmos, futebol-de-vela. E uma rodada de amigos.

Quem duvida?

Quando ele não pode ir por coluna, garganta, sabe-se-lá ou missa, é Chiquinho, Seu Leal, Vala do Cavaco: alguém há de ter a chave. Abre aquela casa - casa à beça - e tá feito, não precisa nem nada. Domingo-samba, sexta-também. Qualquer dia. Vez ou outra, casamento - uns 20 se arranjaram por lá. Separação não conta, que bar também é pra isso.

Esmirrado igual azeitona, é só entrar e pegar a cerveja. Quem quiser que espere para ser servido: não vai viver para tanto. Vale para músicos, carolas e comunistas. Paga na saída. O Alfredo vai anotando, cifrado igual talão de bicho: duas brahmas pro que tem cara de maluco, cinco pra baixinha que está assobiando. Caipirinha tem. Trouxe limão e cachaça? O pilão tá embaixo da pia.

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O primeiro amor ficou pra titia, não casaram por dinheiro que se perde, tá escrito em algum lugar. Alfredo não tem cara de tio ou escondeu com óculos e barba. Filho, não tendo, é coisa abstrata como trave-de-toco-de-vela, mas, porra, vai que era bom igual a ter primo-irmão! Quando passou a mania chata de virgindade das moças, era fusca, areia, escada, fusca. Teve uma que passou no Bip e se lembrou: mostra o joelho, Alfredinho. Carpete era dose.

Hoje tem Lapa, tem sim senhor, e samba em tudo que é lugar. Benza deus. Profissa, moçada defendendo o seu, nada disso é o Bip: mistura de quem sabe com quem tá começando a querer saber, todos só por vontade. Elton Medeiros é da casa, Zé Ketti, Nelson Sargento, Cristina Buarque, por aí vai. Samba com o mínimo que ele precisa – pandeiro e camaradagem. Neném inventou essa coisa toda, tantos anos depois, anda sozinha. Onde começa o bar, onde termina o Alfredinho, molecote de Cosme? – católico, mas comunista, é o que ele sempre diz. Zona-do-agrião. Tá lá, em placa de metal: Bip Bip, a serviço do porre e da amizade, a parede cheia de quadros. O samba comendo.

Que se danem primo-irmão e filho que ficou no caminho. Pergunta para qualquer um das redondezas quem é o Alfredo. A cada duas horas de samba, ele pede a palavra. Xinga por silêncio, que o violão não se ouve, porra! Xinga mais nervoso ninguém doar sangue, as crianças morrendo, essa merda dessa classe média que se lixa pro filho da empregada, as ruas imundas, a água desperdiçando à toa no banho, uma porrada de sambista morrendo sem grana. Pigarreia, desculpando os palavrões: ninguém mais dá bom dia, boa noite, um bando de nariz de peido, vamos nos amar, caralho. Aí escolhe alguém com cara de que não sabe o que esta acontecendo e diz pra correr a latinha dos projetos sociais, cada um pinga o que pode mas, porra, é dinheiro pra asilo e orfanato, a nota fiscal dipendurada na parede. Pede silêncio de novo, isso aqui não é a Lapa.

tálá

Bebedor, perna-torta, peladeiro, achava Copa do Mundo um torneio bem mixuruca. Driblava pra tudo quanto é lado, sempre pelo mesmo lado. Tinha tudo pra não dar certo. Pergunta pra qualquer um das redondezas quem foi. Poesia de rachar. O quadro tá na parede - entre um Aldir e um Nélson Cavaquinho - o Garrincha pulando depois do gol. Deve ter jogado muito futebol-de-vela. Se não tivesse ganhado o mundo do seu jeito anti-heroi, poderia ser dono de um botequim em Copacabana. Desses que não tem nada pra dar certo – sequer uma azeitona!

Quadro na parede, o Neném em pé, docemente razinza.

O Peniche, o Alfredinho, o filho de Eustórgio.

Duas aves-marias.

Três merréis no galo.
 
Até que a última criança não passe fome.

Algum benzetacil pra contar história, a cidade apertadinha em 18 metros quadrados de uma Copacabana inteira que ele trouxe de Cosmos.

Pede a palavra e lá se vai, xingando sempre pro mesmo lado.

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manuelatrindade2@gmail.com