Acontece muito, né?

Mania achar que sem-teto é quem tá debaixo da ponte, lá só peixe e punhado de sujeira, tudo vindo dos condomínios e restaurantes bacanas, pensa que eu não sei? Ó, quase a metade das casas nesse país não tem saneamento, é o que a gente quer também quando quer casa. Mais: moradia. 
Como é que eu não vou tá na luta? No início foi difícil, mal dava tempo pra coçar. Mas aí é polícia esculachando, a novela cheia de preconceitos - a vida dura de todo dia. De todos nós: é só olhar. Cada um tem uma história e tem hora que é a mesma. A gente começa querendo uma casa, mas depois vê que não resolve isso: de cada um tem sua casa e pronto. Né assim não. Trem, escola, trabalho, saúde. Tal. 
Maria. Maria de Lourdes. 
Mas onde eu moro, esse povo todo que taí me chama de Zezé. Claro que moro, ué. E tenho carteira assinada - mania de achar que pobre só caricatura de pobre. Aí eles se surpreendem. Disse outro dia mesmo no serviço, vocês só são médicos porque minha avó foi escrava da avó de vocês, grande vantagem, pensa que eu não sei? Me botaí. Bota toda essa negradaí. Pra tu-vê! Eu sou boa cozinheira, boa tia e boa assistente lá no hospital, eu não seria boa médica por quê? Era só ter podido estudar, minha avó ter podido estudar. Ué.Primeiro morei com meu marido, meu filho tal. É. Casa alugada. Um barraco ajeitadinho. É. Morei nove anos. Com meu filho, meu marido.
Tal.
Casa alugada. 
É.
Longe do trabalho sempre, né? Mas dava pra viver.
Saí depois que meu filho morreu.
Doença congênita degenerativa. A gente notou logo. Corre pra médico, hospital, meu bichinho. Tão miúdo e.
Lembro ele falando, mamãe, tá bom. 
Eu toda noite pensando..
Desculpa, é que. Obrigada.
Você sabe, né, pelo menos seis consultas durante a gestação. Nem sempre evita tudo. Mas você sabe, né, que a quantidade de consultas. Quanto mais grana ou mais estudo, as mulheres têm até o dobro de consultas. O pré-natal. Nem sempre evita, né. Aí eu nunca vou saber.
Meu marido não aguentou e eu também depois já não conseguia. Dor demais. Separamos, mas não dava pra dois aluguéis. A família dele do Norte, ele não ia voltar - ficamos ano e meio morando juntos, só morando. Quando ele morreu do coração, eu não podia mais ficar lá. Um tempo de favor na vizinha, mas tem meus sobrinhos: filhos da minha sobrinha. Maitê, Sofia, Lucas e Maicon. Que moram comigo, a mãe é usuária de drogas, sumiu de casa. A última vez que soube, tava no crack. 
Acontece muito, né?
Hoje eu moro com aquele ali que tá no surdo, como gosta de um pagode. E eu também. Meu sonho é aprender a tocar cuíca - é muito difícil? 
Tamojunto há seis anos, casamos no cartório, tal, só não mudei o nome. Ué, homem não muda o nome dele, pra tu-vê. Sei bem o que é ser mulher, negra. Eles falam que a escravidão acabou porque não sabem de nada. Pergunta pra gente. Esculacho atrás de esculacho. Não como no tempo da minha avó, bisavó, mas não acabou não - mania de achar que escravidão é só em senzala. Se é mulher então, rãn!, eu é que sei, pensa que não? Pode procurar: a gente ganha trinta por cento a menos. Aí depois fazem piada, que nosso lugar é na cozinha, que sei-lá o que não é trabalho de mulher. Fecho logo a cara.
Claro que eu tenho onde morar. A casa é do Valdir, ele tem os filhos dele que moram com a mãe. Eu mais meus sobrinhos estamos lá. Qualquer dia eu morro - eaí - ? Casei com separação total de bens, o Valdir tem os filhos dele, ele morre e a casa vai ser dos filhos dele, tem mais é que ser. E pra onde vão os quatro, que perderam mãe, vó, o pai fugiu. Mania de achar que casa é só ter onde poder dormir hoje. Pra mim é o que eu vou deixar pra eles, é o mínimo, né?
Você desculpa assim eu me emocionar. Tenho dois empregos. São Gonçalo-Ipanema-Nova Iguaçu toda semana. Eles não pagam transporte, olha que sou concursada. É ilegal, mas o povo lá não se junta, não vai resolver nunca. Eu tento, mas falam… Zezé gosta de um rebuliço. E fica nisso.
Mania de achar as coisas estando sempre fora delas.

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